O Gás

Este conto, intitulado O Gás, foi um dos meus contos mais premiados. Ganhou o 1º lugar no Concurso Permínio Asfora de Literatura, ganhando também o Prêmio Paulo Veras de Conto/Crônica. Também foi selecionado no XIII Concurso Internacional Literário de Outono, tendo participado de uma coletânea de contos que foi lançado pela AG editora, em São Paulo. Como muitos aqui não conhecem o conto, resolvi aproveitar este espaço para apresentá-lo.

O GÁS

A repartição pública funcionava naquele prédio velho e sujo. Seus habitantes, todos funcionários públicos, confundiam-se com as velhas paredes e com as teias de aranha que ali afloravam. Ali a vida seguia seu curso e a mesmice já havia engolfado o prédio e seu recheio há muito tempo. Foi aí que, em uma dessas mudanças que ocorrem em todo início de novo governo, assumiu a chefia da repartição um novo chefe. Entrou, analisou, e cismou com o local; ou, para ser mais específico, com o clima local. Como o prédio não tinha ar-condicionado, eram utilizados aqueles ventiladores de teto, a maioria caindo aos pedaços. Ele tanto fez, tanto se reuniu com o governador, tanto chorou miséria, que conseguiu recursos para a instalação de um sistema de refrigeração central. Foi aquele acontecimento! Todos os barnabés felizes e ansiosos pela mudança. A letargia usual substituiu a euforia (quer dizer, ao invés de todos ficarem letárgicos e inoperantes passaram a ficar eufóricos e inoperantes, o que, convenhamos, já é alguma coisa) e todos aguardavam ansiosos o dia da inauguração do complexo. O dia chegou, o sistema foi ligado, e nada! O clima continuou quente, sem a mínima frescura que fosse. Foram chamados técnicos especializados que, após detalhada análise, culparam a estrutura do prédio, com sua sujeira secular. Fizeram uma limpeza geral nos dutos e nos forros e, após mais uma semana de espera, o ar foi ligado normalmente.

O problema é que, juntamente com o ar fresco, veio na tubulação um gás de odor insuportável, lembrando cheiro de bosta fresca. Os técnicos disseram que isso era em decorrência dos infindáveis anos de acúmulo de pó e outras substâncias, mas que, com o tempo, o cheiro iria sumir. No começo, o gás provocou algumas reações mais comuns, como dores de cabeça e náuseas. Mas todos aguentaram firme: era um sacrifício válido, em prol de um clima alpino. O problema é que, com o tempo, embora o cheiro não incomodasse mais, o gás continuava a produzir seus efeitos. Alguns funcionários adquiriram rinite, outros passaram a ter queda de cabelo, outros ainda adquiriram problemas de visão. Correu até o boato que um dos funcionários do protocolo tinha ficado impotente, o que provocou uma onda de terror entre os demais. O chefe teve que fazer uma reunião e levar um médico, que atestou que a impotência do indivíduo era problema somente dele, não do gás. Acalmaram-se um pouco os murmúrios, mas estavam todos muito desconfiados.

Foi então que a coisa agravou-se e seu Silva, um funcionário antigo do setor de limpezas, teve um testículo acrescido à sua dupla. Mais uma semana, outro triovóide e, em um mês, já eram sete funcionários com três quibas. Na ala feminina, a Carlusa, uma estagiária, teve um seio nascido bem no meio das costas, o que valeu uma gracinha de um dos analistas de sistema do 2º andar, que por sinal foi um dos beneficiados com um testículo a mais: “Agora vai dar gosto abraçar a Carlusa. Não vejo a hora de chegar o aniversário dela”. Não obstante a gracinha, o estado de espírito no prédio era péssimo, ainda mais porque o governo, preocupado com o problema, instituiu quarentena e impediu todos de deixarem o prédio. O prédio, para revolta de todos, foi cercado por forças policiais. Ninguém entrava e ninguém saía. O único contato com o meio exterior era o telefonema diário que o governador dava ao chefe do órgão, para sondar a quantas iam os sintomas.

Com dois meses de isolamento, as esperanças eram mínimas. Já havia pessoas cegas, com visão de raio x, com capacidades telepáticas, com 64 dentes e até uma senhora que adquiriu uma outra vagina, tendo sido apelidada de Dona Flor, talvez em uma alusão ao fato de ela poder comportar dois maridos ao mesmo tempo no seu regato. O governo, embora preocupado, manteve a quarentena, na esperança de que os sintomas fossem passageiros. Até que um dia veio a gota d’água! O chefe ligou desesperado para o governador e disse que dois funcionários tinham amanhecido manifestando desejo de trabalhar. No outro dia, o número subiu para 8 funcionários com ânsias de trabalho. Nesta hora, neste exato momento, o governador perdeu todas as esperanças. Ligou para o presidente, narrou todo o fato e principalmente o último acontecimento: funcionários públicos com mania de trabalho. Então, em acordo com o presidente, o governador mandou explodir o prédio com todos dentro. Afinal, a situação tinha fugido do controle.

Sérgio Idelano

Este conteúdo é restrito a membros do site. Se você é um usuário registrado, faça o login. Novos usuários podem se registrar abaixo.

Login de Usuários