Nós que nascemos tortos

Diz um velho ditado que “pau que nasce torto, morre torto”. Andei refletindo esses dias sobre este adágio, e passei a discordar dele. Relembrei minha infância, adolescência, juventude, as amizades que eu fiz durante essa longa estrada e as ações que cometi, e chego à conclusão que éramos todos muito tortos. Da infância em que corríamos soltos por uma terra de ninguém, sem qualquer vigília opressiva por parte de nossos pais, fazendo coisas que só de pensar me arrepiam os poucos cabelos que ainda tenho. Brincávamos de quebrar lâmpadas com baladeira, e quebrávamos tantas que atribuo boa parte da culpa pela situação falimentar da EQUATORIAL a nós mesmos. Juntávamos, eu, meu irmão e meus primos, uma cesta cheia de mamonas, e ficávamos estrategicamente posicionados sobre o muro da casa de uma tia nossa, a tascar mamonas nas costas de ciclistas e motociclistas. Lembro que uma vez ficamos presos uma tarde inteira dentro da casa do meu tio, já que um motociclista truculento, desses que não aceitam uma brincadeira, ficou dando voltas no quarteirão, a desejar nosso sangue. Comprávamos bombas de São João que mais pareciam um artefato terrorista, e colocávamos sob latas, vidros e tudo o mais que nossa imaginação mandasse, a ver até que altura a explosão mandaria. Íamos à fazenda de meu avô, que dirigia um velho jeep, e passávamos a viagem toda jogando chupas de laranja na cabeça das pessoas que davam o azar de cruzar conosco. Comíamos, na véspera, ovo misturado com tudo de ruim que possa existir, apenas para peidar podre na viagem, deixando nosso avô fulo da vida (nessa brincadeira, meu primo era imbatível, já que era naturalmente podre, mesmo que tomasse perfume).

E veio a adolescência. E com ela, a razão? Nem pensar. Roubávamos o bugre de meu tio e saíamos dirigindo pelas então pouco movimentadas ruas da zona leste, mexendo com os transeuntes que passassem por nossa frente. Dormíamos na casa de meu tio, nos finais de semana, e aprontávamos horrores com o infeliz que primeiro pegasse no sono. Um amigo nosso, o Antônio, que tinha sono de pássaro, invariavelmente se lascava. Botávamos a rede dele na porta do quarto do meu tio, apenas para vê-lo levar um esporro, passávamos pasta de dente em seu sovaco, batom nos seus lábios, tascávamos uns perfumes fortíssimos que minha tia trazia de Manaus em sua cabeça, deixando ele com esse cheiro por meses e, uma vez, até colamos os cinco dedos de uma mão aos da outra usando Super Bonder, tendo sido preciso arrancar o couro da cabeça dos dedos para que ele saísse da posição de oração. Saía à noite com minha turma do Diocesano, onde também não tinha nenhum santo, e apostávamos, às vezes, quem beijaria uma garota primeiro, e chegamos a instituir prendas ao que não conseguisse a façanha, tipo pagar a cerveja e o sanduíche do trailer onde lanchávamos de madrugada antes de ir para casa. De uma dessas apostas veio um apelido que me acompanhou por boa parte do Diocesano: Boca Louca. É que naquele dia eu chamei uma menina para dançar, levei-a para o meio do salão, onde os outros poderiam ver (se ninguém visse, não valia ponto) e tasquei um beijo de novela na boca dela. Depois, desconversei e voltei para perto de meus amigos, para tomar uma cerveja e ver o desespero dos outros à cata de suas vítimas. Foi aí que me disseram que minha boca e minha face estavam sujas de batom. Fui ao banheiro, tentei tirar e nada! Fiz de tudo e o batom continuava lá. Voltei à menina e perguntei que batom era aquele que não queria sair. Ela falou que era o batom Boca Louca, e que ele demorava dias para sair. O Boca Louca era por conta de uma novela que passava na época, Tititi se não me engano. Em resumo, fiquei uns 2 dias de batom na boca, e peguei o apelido. Aprontávamos também com nossas namoradas, e após deixarmos elas em casa, corríamos para a frente do River Atlético Clube, ou do Tigrão, ou das Classes Produtoras, a sondar corpos que nos aquecessem o resto da noite. E tudo era feito assim, sem traumas, sem cobranças. Não havia namoradas perseguindo ninguém, até porque não existia celular e não tinham como saber onde estávamos. Em suma, decepcionávamos, éramos decepcionados, traíamos, éramos traídos, dávamos fora, pegávamos fora…e vivíamos intensamente.

A maior parte de minhas amizades são longevas. Meus amigos daquele tempo, meus companheiros de farra e de “crime”, são meus amigos até hoje, frequentam minha casa, tomam umas e outras comigo. Casei com uma delas, Lysia, colega de Diocesano e participante de boa parte daquela bagunça toda. Um deles é padrinho de minha filha mais velha. Eu sou padrinho dos filhos de outros dois deles. E posso garantir que todos, por incrível que possa parecer, são pessoas respeitáveis, pessoas de bem, pais amorosos, bons maridos (nem todos, claro, aí já é querer demais…) e cidadãos de caráter ilibado. São gente de bem!

E por que eu estou falando isso tudo? Porque li esses dias uma entrevista com um desses políticos atolado até o pescoço em falcatruas. E ele falou, como que para justificar sua limpeza ética, que tinha tido uma educação exemplar, e que sua infância e adolescência tinham sido permeadas de bons exemplos e atos inatacáveis. E aí eu pergunto a este mesmo político: e o que você fez com esses exemplos, mestre? Por que não os trouxe para a vida adulta? Por que maculou essa infância e juventude até então imaculada? Por que não prosseguiu sendo este exemplo a ser seguido? Não tenho inveja de sua infância pura, nem de sua juventude de atos nobres. Não, senhor! Fico com minha infância cheia de artes e danações, pois Deus é testemunha que eu era apenas uma criança, e não tinha pleno conhecimento de meus atos. Fico com minha adolescência malandra, cheia de infrações e permeada de pequenos pecados, pois Deus é testemunha que eu era muito jovem, e procurava desesperadamente a felicidade. E, finalmente, fico com minha vida adulta, porque eu trouxe para ela tudo que vivi intensamente ao longo de minha vida e, juro, posso olhar para trás, apontar e falar para meus filhos: “Aquele cara fui eu! Não era lá muito flor que se cheirasse não, mas sempre encarou a vida como uma dádiva de Deus, e assim procurou vivê-la intensamente, e nunca, em momento algum, envergonhou aqueles que lhe devotaram amor e cuidado. Aquele cara fui eu, e também será um pouco de vocês, se Deus assim permitir!

Sérgio Idelano

Este conteúdo é restrito a membros do site. Se você é um usuário registrado, faça o login. Novos usuários podem se registrar abaixo.

Login de Usuários