FOLHAS AO VENTO (e vidas ao sabor do vento)

FOLHAS AO VENTO (e vidas ao sabor do vento)

 

    Tínhamos um colega no curso de agronomia que era revoltado com o sistema, desigualdade e outras coisas do gênero. Também defendia uma agricultura natural, sem defensivos, coisa e tal. Pois bem, naqueles dias, ele andava mais chato do que nunca, pois tinha adquirido um livro intitulado “AGRICULTURA ALTERNATIVA”, uma espécie de livro obrigatório para pessoas assim, sendo que esse colega não podia encontrar ninguém, que logo começava a falar das maravilhas ensinadas no livro. Numa dessas exposições, o Renato, para ser educado, disse que tinha muito interesse no assunto, o que deixou nosso colega em êxtase (nunca ninguém tinha manifestado interesse). Ele perguntou, então, se o Renato não queria levar o livro para ler no final de semana, contanto que trouxesse segunda e que tivesse muito cuidado, pois o livro era, segundo o dono, raríssimo. Renato, já arrependido e sem o mínimo interesse por tal leitura, resolveu levar, guardar numa gaveta e devolver no dia aprazado, afirmando que lera e que tinha adorado.

    Como era uma sexta-feira, ao final das aulas, reuniu-se a turma da cerveja, que foi dividida em dois carros: o do Rui e o meu. O Renatão entrou no carro do Rui e guardou o livro no porta-luvas. Fomos direto para um barzinho. Todos descemos, entre nós o Domingos, conhecido na turma por Domingão, indivíduo folclórico, conhecido por nunca querer ir embora das farras, a ponto de, em uma tentativa desesperada de segurar algum colega, começar a prometer pagar tudo: cerveja, tira-gosto, mulheres. No bar, depois de tomarmos todas, resolvemos ir embora, decisão contestada pelo Domingão, que ofereceu uma “saideira” por sua conta, em um bar perto de sua casa. Para não desgostar o colega, resolvemos que tomaríamos umas três e depois iríamos embora.

    Ao se dirigir para o carro do Rui, o Renato notou que o Domingão, que tinha vindo comigo, já estava abancado no banco da frente, justamente no lugar em que ele tinha vindo, de modo que entrou no meu carro. Todos a postos, começamos a seguir o carro do Rui, pois só o Domingão conhecia o bar. Ao passarmos pela ponte sobre o Rio Poti, começou a vir de dentro do carro do Rui uma chuva de papel picado, jogado pelo anfitrião da saideira que, a cada leva de papel, gritava feito desesperado, como se estivesse comemorando algo. A turma que vinha no meu carro, entre eles o Renatão, riu muito daquela chuva de papel e da esparrosidade do autor. Ao chegarmos ao bar, porém, quando o Renato perguntou de onde ele tirou tanto papel, ele respondeu: “encontrei no porta-luvas um livro idiota sobre agricultura alternativa e resolvi destruí-lo antes que alguém lesse”.

    Até hoje, passados vários anos, o dono do livro nutre pelo Renato um ódio mortal.

    Reproduzi esta história, que já havia contado em um livro que escrevi muitos anos atrás, sobre minha turma de Agronomia, para falar do Domingos. Após nos formarmos, continuei a encontrar o Domingão com certa frequência, e sempre que nos víamos, tomávamos um chopp e rememorávamos nossa maravilhosa turma, e nossos cinco anos de farra, que me impediram de aprender com mais esmero a ciência agronômica. A última vez em que encontrei o Domingos ele estava com um colete ortopédico segurando o pescoço, e me explicou que tinha aparecido uma coisa esquisita nele, que ele ainda não sabia o que era, e que fazia com que ele não controlasse direito o movimento do pescoço. Conversei um pouco com ele, desejei boa sorte e disse que tudo ia ficar bem. O tempo passou, e não mais o vi. Semana passada, encontrei um colega daquela época, que me falou que havia encontrado o Domingos no shopping. Estava numa cadeira de rodas, empurrada pela esposa, e tinha o corpo tomado por espasmos violentos, e os olhos rodavam nas órbitas sem fixar-se em um ponto determinado. Mesmo assim, ele reconheceu o amigo, segurou a sua mão e esboçou um sorriso, um sorriso triste e melancólico, um sorriso que remetia a tempos mais felizes. Sua esposa falou que a doença dele (uma porra degenerativa qualquer) era incurável, e pediu para nosso amigo avisar o resto da turma, para que fizéssemos uma visita a ele, e tentássemos minorar um pouco sua solidão e depressão.

    Aquilo acabou com minha tarde. Fui para casa, tranquei-me no meu quarto e chorei por meu amigo, e também pelas coisas que passam. Não consigo aceitar um troço desses. Pô, logo o Domingão! Um cara cheio de vida, um cara que transbordava alegria, um companheirão de farra! Companheiro de uma época em que éramos todos felizes, meio irresponsáveis e estávamos nos lixando para o mundo! Não é justo, não é mesmo! E tomei uma decisão, covarde e egoísta: não vou visitar o Domingos junto com a turma. Simplesmente não iria suportar vê-lo desse jeito. Quero lembrar do Domingão pagando cervejas ao final de cada farra, para nos impedir de ir embora. Quero congelar na minha mente a imagem daquele cara, cabeça do lado de fora do carro, gritando feito um condenado enquanto jogava uma nuvem de papel picado ao vento. Quero congelar essa imagem, a imagem de um céu tempestuoso, uma turma de amigos meio bêbados e uma nuvem de papéis bailando ao vento, como em um carnaval perdido em algum lugar do passado!

    P.S Estou rezando por ele a cada noite. O jogo ainda não acabou. Nosso destino é apenas um dente-de-leão ao sabor do vento. E o vento pode mudar…

Sérgio Idelano

6 Comentários em FOLHAS AO VENTO (e vidas ao sabor do vento)

  1. Na vida temos altos e baixos, devemos aproveitar cada momento bom sem esquecer que os ruins são aprendizados. E amigo é amigo…ne,?! Porém, temos fraquezas.

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