Não é de agora que surgem iniciativas para limitar o controle sobre a administração pública. Há mesmo alguns conhecidos juristas, dedicados à advocacia de empresas com vultosos contratos com o poder público, que estão sempre propondo medidas para impedir que a fiscalização sobre tais contratos possa ser tempestiva e eficaz.
Foi assim com o Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública, que pretendia limitar o controle ao exame posterior dos atos e contratos, restringindo o controle prévio ou concomitante e limitando a possibilidade de expedição de medidas cautelares para impedir ou sustar danos ao erário decorrentes de atos ilegais em curso ou ainda em vias de ocorrer.
Alguns sustentam que isso ocorre porque haveria uma hipertrofia do controle, que ele estaria se imiscuindo em assuntos que seriam de exclusiva alçada do Poder Executivo. Outros afirmam que haveria uma espécie de “apagão da caneta”, que os gestores públicos estariam receosos de tomar decisões, com medo de possíveis responsabilizações perante os órgãos de controle. Há, ainda, quem afirme que o controle trava o país, engessa a administração, atrasa o desenvolvimento, impede que a administração concretize seus projetos, atribuindo ao controle o fracasso no cumprimento de cronogramas e metas.
Convido todos a se fazerem a seguinte indagação: o país está atolado neste lamaçal de corrupção por excesso ou por falta de controle? A atuação do controle melhora ou piora o resultado da administração pública?
O controle é função básica da administração, seja ela pública ou privada. Não existe organização sem controle, e ele precisa ser tão mais eficiente quanto maior e mais complexa a organização. Ninguém imagina uma empresa como a Vale, o Bradesco, a Ford, para citar apenas algumas grandes companhias, sem um eficiente sistema de controle interno.
Da mesma forma, uma administração pública proba e eficiente não pode prescindir da atuação do controle. Ele deve ser o garante do bom emprego dos recursos públicos. Se enfrentamos tantos casos de corrupção e desperdício de dinheiro público, não é por excesso de controle, é por falta de sua atuação presente e tempestiva, causada por muitos fatores, entre eles a indicação política para os tribunais de contas, responsáveis por parte expressiva da função de controle no país.
Justamente quando o controle começa a mostrar mais presença e capacidade de induzir melhorias e impedir que decisões políticas sejam implementadas ao arrepio de normas constitucionais e legais, ressurgem iniciativas para limitá-lo, para contê-lo, para garantir aos governantes maior capacidade de criar fatos consumados, ainda que contrários à Constituição e ao ordenamento jurídico.
Neste momento, uma nova iniciativa caminha a passos rápidos para enfraquecer a atividade de controle no Brasil. Trata-se do Projeto de Lei 7.448, já aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, encaminhado para sanção ou veto da Presidência da República. Um projeto insidioso, que tramitou apenas por comissões, sem votação em Plenário, sem audiências públicas para discutir seus impactos na Câmara dos Deputados, não obstante sua notável repercussão para a atuação do controle no país. Houve apenas uma audiência pública no Senado, com a participação apenas de representantes do Poder Executivo.
O projeto visa introduzir na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro normas alegadamente destinadas a conferir segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do Direito Público. Ao contrário do que propõe, se sancionado integralmente, o projeto enfraquecerá sobremaneira o controle, será fonte de insegurança jurídica e premiará a ineficiência dos gestores públicos, além de apresentar conteúdo que não guarda compatibilidade material com a finalidade da LINDB, que é o de definir princípios de interpretação integradora no ordenamento jurídico brasileiro.
Veja-se a propósito o artigo 20 do projeto que exige que todas as decisões, administrativas ou judiciais, incluam em sua motivação a ponderação de suas consequências práticas, além da motivação para exclusão de outras alternativas possíveis, trazendo ônus injustificado e insuperável aos julgadores. Vale dizer, se o Tribunal de Contas da União identificar uma ilegal prorrogação de contrato de concessão, para que possa determinar a anulação do ato e a realização de licitação para o contrato, como manda a Constituição Federal, terá o TCU de fundamentar sua decisão não apenas no ordenamento jurídico, mas terá de justificar e ponderar todas as consequências práticas de sua decisão, como se a responsabilidade pela ilegalidade fosse dele, e não do gestor que a praticou.
Não que já não haja boa dose de prudência e consequencialismo nas decisões dos órgãos de controle. Na defesa que fazem do ordenamento jurídico, atuam com os olhos voltados para a realidade. O que quer o projeto, no entanto, é a inversão do ônus de provar a adequação e a razoabilidade do ato administrativo, assumindo que o ato administrativo do gestor é bom por definição e que sua reversão a partir de uma decisão administrativa ou judicial é que tem de ser exaustivamente justificada com elementos que extrapolam a legalidade, incluindo também, obrigatoriamente, uma completa análise de um amplo espectro de possibilidades de decisões administrativas alternativas que o gestor poderia ter tomado. Assim, aquilo que o gestor deveria deixar como fundamentação no processo administrativo que antecedeu sua decisão e que poderia ser apresentado por ele aos órgãos de controle em defesa de seu ato passa a ser ônus e obrigação de quem exerce o controle.
Tais ponderações são compatíveis com decisões administrativas tomadas pelos gestores. É exatamente isso o que deles se espera. Não são compatíveis, entretanto, com decisões de órgãos de controle ou decisões judiciais que visam garantir a observância da decisão administrativa com o ordenamento jurídico, não sendo razoável exigir do julgador que pondere sobre hipóteses alternativas supostamente mais ou menos gravosas que poderiam ter sido adotadas pelo gestor. Esse ônus é dele e não pode ser transferido ao julgador.
O julgador tem o dever de aplicar e proteger a lei como expressão da vontade legítima da sociedade. Sanções eventualmente aplicáveis a gestores decorrem de determinação legal, não sendo lícito ao julgador se esquivar de aplicar a lei para substituí-la por um critério subjetivo que lhe pareça mais adequado. É a própria lei que estabelece as consequências de sua violação, não a vontade ou o subjetivismo da autoridade que julga.
Ademais, sempre alguém poderia vislumbrar uma alternativa não adequadamente pensada e sopesada pelo julgador, abrindo ensanchas a discussões infinitas, múltiplos recursos e evidente insegurança jurídica.
Da mesma forma, o artigo 21 do projeto de lei pretende transferir aos órgãos controladores o exame das consequências do não atendimento por parte do administrador de todas as exigências legais, servindo ao fim de incentivo a que descumpra as normas. Vale dizer, se o gestor descumpre normas, em vez de ser dele o dever de justificar sua conduta, o órgão de controle é que terá o dever de perscrutar todo o universo de alternativas possíveis para avaliar a desconformidade do ato com a lei.
No artigo 22, os problemas continuam. O texto propõe que, “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”. Observe-se o alto grau de indeterminação e abstração dos conceitos invocados, a justificar qualquer ilegalidade com argumentos de necessidade premente, tornando quase impossível a impugnação de qualquer ato administrativo.
Note-se que se está a discutir com argumentos circunstanciais não apenas eventual culpabilidade do agente que viola a norma, mas a própria validade do ato que viola a norma. Assim, uma contratação emergencial de servidores públicos sem concurso público poderia ser justificada por uma necessidade premente, uma despesa pública não autorizada pelo orçamento poderia ser justificada pelo juízo do gestor de que aquela despesa atenderia a um direito fundamental do cidadão. Não só o gestor não receberia nenhuma sanção, como o próprio ato ilegal seria insuscetível de correção pelo órgão de controle. Os servidores contratados sem concurso, por exemplo, não poderiam ser desligados do serviço público.
Todo o Direito Administrativo hoje construído em torno do princípio da obediência à lei passaria a ser orientado pela análise circunstancial dos casos concretos, transformando a lei em apenas mais um dado da realidade, passível de ser cumprida ou descumprida conforme o gestor subjetivamente avalie que seja possível ou conveniente cumpri-la, tornando o controle uma atividade virtualmente impossível.
Também o parágrafo único do artigo 23 merece ser vetado, porquanto inconstitucional. A Constituição Federal confere aos tribunais de contas o poder de “assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade”. O dispositivo proposto pretende subverter essa norma, conferindo ao gestor o direito de negociar com o controlador um compromisso para ajustamento da irregularidade, em vez de submeter-se à força cogente da decisão que fixa prazo.
O projeto chega, ainda, ao absurdo de prever uma ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, subvertendo por completo os instrumentos de controle administrativo estabelecidos pela Constituição Federal, como o controle interno e o controle externo. Trata-se da criação de mecanismo de exclusão da atuação do controle interno e externo, com consequente assoberbamento do Poder Judiciário com questões para as quais ele não está aparelhado, ao passo que os tribunais de contas e os órgãos de controle interno estão, com seus auditores reconhecidamente competentes.
Com esse dispositivo, bastaria que um órgão de controle questionasse a validade de um ato ou contrato para que o gestor, em vez de defender o ato perante o órgão de controle, lançasse mão logo de uma ação judicial declaratória da validade do ato, afastando assim a possibilidade de atuação do órgão de controle constitucionalmente criado para fiscalizar os atos e contratos da administração. Ora, o TCU está incomodando com uma auditoria? Proponha-se logo uma ação declaratória da validade dos atos questionados e afaste-se a ação do órgão de controle.
O artigo 26 do projeto é francamente contrário ao interesse público. Além de usar expressão aberta, como “razões de relevante interesse geral”, serve de salvaguarda e prêmio ao gestor que atua contra a lei. Com efeito, a possibilidade de celebração de compromissos, com transação de sanções, créditos passados e estabelecimento de regime de transição, dá ensejo à irresponsabilidade e impunidade, já que as consequências de atos violadores à lei podem ser afastadas com simples celebração de acordo, sem nenhuma responsabilização pessoal.
O artigo 28 do projeto é outra porta aberta para a impunidade e ineficiência na administração pública. Por ele, o agente público somente poderá ser responsabilizado por atos dolosos ou erros grosseiros, deixando isento de qualquer responsabilidade aquele que age de forma negligente, imprudente ou com imperícia. Assim, gestores sem nenhuma capacidade técnica poderão atuar impunemente, tendo a ignorância como escudo.
Afigura-se também contrário ao interesse público e à moralidade administrativa a transferência ao erário de todos os custos da defesa de agente público que tenha seus atos contestados, sem qualquer diferenciação de tipo de ato ou de beneficiário do ato, passando para a administração pública todo o risco da conduta irregular do agente.
Todas essas características do projeto evidenciam que um de seus objetivos primordiais é o de mitigar a possibilidade de controle dos atos da administração pública, uma vez que criam obstáculos à responsabilização de agentes públicos que cometam ilegalidades.
Cabe repisar que nenhuma audiência pública foi feita na Câmara dos Deputados para debater esse projeto com a sociedade e somente uma foi feita no Senado, com a presença tão somente de representantes do Poder Executivo. Em momento algum, qualquer órgão de controle como o TCU, a PGR, o CNJ ou o CNMP foi chamado a discutir e oferecer sugestões a respeito da proposta.
Não por outra razão, diversas entidades que atuam no controle da administração pública, como a AMPCON, CNPGC, ANTC, Atricon, Anamatra e outras, estão publicamente se manifestando contra a sanção presidencial do projeto, pedindo seu veto integral ou parcial, a fim de que a Constituição Federal e o interesse público em um controle efetivo e tempestivo da administração pública sejam preservados.
Se porventura o projeto for sancionado tal como está, certamente sobrevirá mais insegurança jurídica, dado que diversas ADIs serão propostas e que os órgãos de controle que têm competências asseguradas pela Constituição continuarão a exercê-las, fazendo prevalecer a Constituição em face da lei imoral e inconstitucional eventualmente sancionada.
Em um momento em que a sociedade brasileira requer o fortalecimento dos órgãos e procedimentos de combate e prevenção à corrupção e à má gestão dos recursos públicos, o Projeto de Lei 7.448/2017 não poderia ser mais inoportuno.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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