Um lugar onde chorar nossos mortos

Viver é caminhar pelo desconhecido. Seguir uma estrada inexplorada, sem mapas, sem pontos de referência. Viver é não saber o que vem depois da curva. Viver é a sensação eterna de frio na barriga, a boca seca, o bater incerto das batidas do coração. Viver, mais do que qualquer outra coisa, é não saber quando vamos morrer e aprender a enterrar nossos mortos. E como isto é difícil! Perdemos entes queridos o tempo todo! A vida é um constante perder. Quanto mais se vive, mais se perde pessoas amadas. E temos que continuar seguindo em frente. O trem continua se ainda não é a nossa estação. Não podemos parar no meio do caminho, não podemos descer na estação errada. Há muito a fazer ainda! Podemos deixar cair uma lágrima e nos despedir, mas temos uma estrada a percorrer, temos primaveras a vivenciar e temos missões a cumprir até o momento em que chegue nossa própria estação. Philip Roth, no melancólico livro O Teatro de Sabbath, fala em um trecho uma coisa que todos nós já nos perguntamos ou vamos nos perguntar um dia:

“E se estivessem todos vivos? Morty. Mamãe. Papai. Drenka. Abolir a morte – uma ideia empolgante, muito embora não ter sido ele o primeiro a ter essa ideia. Voltar a vida para trás, como um relógio no outono. Basta retirar o relógio da parede, voltar os ponteiros para trás e para trás até que todos os nossos mortos ressurjam, como no tempo normal”.

Mas isto não é possível. O relógio não vai voltar! Em menos de um século, todo mundo que está lendo esta minha crônica semanal estará morto. Nenhum de nós estará neste plano, e todo nosso tempo aqui na Terra terá passado tão rapidamente que chega a dar aflição pensar sobre isto. Porque cada pessoa que morre é um ser único. Porque cada uma destas pessoas que se foram era um ser único, que tinha família, que amava e era amado, que tinha sonhos e planos e que amava a vida. Elas não são números! Elas não são estatísticas! Morre um pedaço de nós a cada ente querido que perdemos! E temos que sentir esta perda, a perda deste pedaço de nós. Sentir e lembrar, porque a lembrança é um dom divino! O poder de recordar, de lembrar pessoas que nos foram importantes! Como seríamos vazios se vivêssemos somente o agora e não acumulássemos nada das coisas vivenciadas! Benditas sejam as memórias, que não deixam morrer velhos momentos, velhas alegrias, velhos amores e nossos mortos!

Morrer é assustador! Tanto que fazer! E tão pouco tempo pra isso! Tanto que fazer, que conhecer, que degustar, que vivenciar! E uma vida tão curta, tão mal dimensionada aos nossos anseios! Tanto que sorver! Tantos sonhos! Tantas coisas planejadas! E uma vida limitada pela efemeridade! Tanto que fazer e tão pouco tempo! Tanto que fazer, tanta coisa dentro de nós, tanta coisa que não cabe dentro dos limites do nosso corpo, da nossa efemeridade, da nossa mortalidade. E por que estou falando de morte hoje? Porque é preciso! Porque não sabemos lidar com a morte! Porque apesar da morte, da finitude, da efemeridade de nossas vidas, alguns de nós somos arrogantes, alguns de nós julgam-se muito superiores a outros seres humanos. Alguns de nós se julgam diferenciados. Uma passagem (mais uma. Há sempre o que se tirar dos livros) do livro Um Outro Amor, do norueguês Karl Ove Knausgard, é bastante didática: “Mas as estrelas cintilam acima das nossas cabeças, o sol arde, a grama cresce e a terra, ah, a terra engole toda a vida e apaga todos os rastros, faz crescer vida nova em uma enxurrada de pernas e olhos, folhas e unhas, capins e rabos, queixos e peles e troncos e entranhas, para depois engolir tudo outra vez. E o que nunca entendemos direito, nem vamos entender, é que tudo acontece fora de nós, que nós mesmo não temos parte nenhuma nisso tudo, que somos apenas aquilo que cresce e morre, cegos como as ondas do mar”.

Somos cegos! Cegos como as ondas do mar! Todos nós! O que temos é que botar nossas contas em dia! O que temos é que tratar bem as pessoas! O que temos é que deixar de ser escrotos! E, finalmente, o que temos é que aprender a enterrar nossos mortos. Sigamos nosso caminho e, vez em quando, enterremos nossos mortos com carinho e saudade. E, quando chegar nossa hora, que nossa vida tenha valido a pena, e que deixemos saudades boas aos que ficam.

Quero dedicar esta crônica a duas pessoas: ao Avelar, tio mais novo da minha esposa, que partiu muito jovem ainda, no auge da pandemia, trabalhando como médico em Belém, na linha de frente do combate à Covid. Gratidão por todos os momentos que tivemos juntos. Tenho sempre em minha mente a imagem das incontáveis vezes em que cruzamos o rio Guamá para a ilha do Combu. Aquele momento em que nós, latinha de cerveja na mão, rumávamos para a casa do seu Odair, um seringueiro de cuja esposa ele tinha feito todos os partos, e que em sua gratidão sempre nos recebia muito bem, e onde ficávamos até o sol descer sobre os manguezais ao redor, comendo caranguejo, peixe e carne, e jogando conversa fora. Esta é a imagem que guardo dele sempre. A outra pessoa é nosso amigo Augusto, assim como eu oriundo do Banco do Brasil. Prefiro guardar dele sempre a voz tranquila e o sorriso maroto, e a felicidade em seu semblante ao me contar, na porta do TCE, uma semana antes dele ter partido, que estava contando os dias para a merecida aposentadoria. É este sorriso que guardo na lembrança. Que vocês estejam bem, caras!

Sérgio Idelano

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