O papel do STF e dos tribunais de contas na situação fiscal brasileira

Foto: Divulgação/STF

Todos já sabem que a situação fiscal brasileira é delicada. A União ostenta dívida pública superior a 80% do PIB, que cresce em ritmo insustentável há cinco anos, graças ao aumento irresponsável de gastos e renúncias fiscais do período 2008-2015, que nos legou um déficit fiscal recorrente nos últimos cinco anos da ordem de R$ 150 bilhões anuais, limitado nos últimos dois anos, mas ainda não revertido, o que ainda demandará alguns anos e muitas medidas de duro ajuste.

Nos estados, a situação é tão ou mais grave. Há poucas semanas, a Secretaria do Tesouro Nacional publicou relatório sobre a situação fiscal dos estados brasileiros e do Distrito Federal. O quadro é desanimador, pois mais da metade dessas unidades da federação passa por profundo desajuste fiscal, com gastos com pessoal ativo e inativo acima do permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que é de 60% da receita corrente líquida. Há estados gastando mais de 70% dessa receita, um verdadeiro despautério. Há estados ainda com problemas de endividamento excessivo e de não cumprimento dos mínimos constitucionais da saúde e da educação.

Curiosamente, as contas dos governadores desses estados não receberam pareceres pela rejeição emitidos pelos respectivos tribunais de contas. Ao contrário, pareceres pela aprovação das contas, ainda que com ressalvas, davam a impressão de que o importante limite de gasto com pessoal estabelecido em lei estaria sendo respeitado. Evidentemente, com esse beneplácito, os governadores, em vez de admoestados e eventualmente punidos, se sentiram encorajados a gastar de forma irresponsável, como se não houvesse amanhã, mas, se há algo certo sobre o futuro, é que ele sempre chega.

É difícil defender a responsabilidade fiscal porque ela é naturalmente antipática. Ela implica dizer não, no presente, a uma série de desejos e vontades dos governantes e, muitas vezes, da própria sociedade, para permitir que, no futuro, as necessidades já atendidas possam ao menos continuar a ser atendidas, condicionando ampliações de gastos e de serviços públicos à ampliação de receitas. Chavões sedutores como “tal coisa não é gasto, é investimento” e “esse gasto vai ativar a economia e gerar aumento de receita” surgem para justificar qualquer despesa e parecem entorpecer a mente de gestores e cidadãos pouco acostumados a serem realistas.

Apenas uma pequena parte do gasto público retorna como arrecadação de impostos. Se para aumentar a arrecadação bastasse o governo gastar mais, estaria encontrado o Santo Graal das finanças públicas. Bastaria gastar sempre mais, para se arrecadar cada vez mais. Teríamos o moto perpétuo na economia, a geração infinita de riqueza e todos poderiam ser infinitamente ricos. Não é assim que funciona. É preciso ser realista e dizer não para uma série de demandas e expectativas, ainda que legítimas. É preciso escolher e escolher é dizer sim para a menor parte dos desejos e não para a maior parte deles e isso não é nada simpático para ninguém.

Ser irresponsável fiscalmente é muito mais simpático para o governante. Qual governante não gosta de dar aumentos salariais aos servidores, contratar mais, iniciar novos programas, oferecer novos serviços? Não há dúvida de que isso traz uma gratificante sensação de poder e de realização. A questão é saber se isso está sendo feito de forma responsável, isto é, com lastro em arrecadação crescente, ou se o governante está dando o passo maior que sua perna, está aumentando gastos sem correspondente crescimento da receita. Nossa história demonstra que nossos governantes não resistem à tentação populista de aumentar gastos, mesmo sem receita que os sustente, atitude que os deixa com fama de realizadores, enquanto os problemas futuros recairão sobre outros eleitos posteriormente. Estes é que terão os ônus de adotar medidas indigestas para recuperar o equilíbrio fiscal perdido.

Nossa classe política e os próprios eleitores parecem não ter introjetado ainda o valor da responsabilidade fiscal. Nem os governantes em geral se esmeram para gerir os recursos públicos com equilibro e preocupação com o futuro, nem os eleitores tem olhos para a saúde das finanças públicas quando avaliam os governantes e os candidatos a sê-lo. Quem gasta mais e quem promete gastar mais são em geral mais bem vistos pelo conjunto dos eleitores. Pelo menos, essa tem sido nossa dinâmica político-eleitoral. Oxalá isso mude o mais rapidamente possível.

Muitos governadores colocaram na crise econômica a culpa pelo desequilíbrio fiscal de seus estados, mas outros estados conseguiram se manter ajustados mesmo em meio a mesma crise, apesar de sofrerem os mesmos efeitos, porque já antes da crise tiveram uma postura mais responsável e parcimoniosa com o aumento dos gastos obrigatórios, como são as despesas com pessoal. Parabéns ao estado do Espírito Santo, estado fiscalmente ajustado não só quanto ao limite de gastos de pessoal, como também quanto à sua capacidade de endividamento, a ponto de ser o único a receber nota de crédito do Tesouro em grau máximo!

O limite de gastos com pessoal passou a ser visto não como limite, mas como meta pelas corporações, que lutam para aprovar planos de cargos e salários até que o limite seja atingido e elas competem entre si. A lógica falaciosa adotada é a de que a lei autoriza 60%, então porque o estado se negaria a gastar 60%, se já está autorizado pela lei? Todas lutam e pressionam por aumentos e competem entre si. Cada uma procura aumentar seus salários antes que outra categoria o consiga e consuma o “espaço fiscal disponível”. Tudo são escolhas. O estado que escolhe gastar mais com pessoal, está escolhendo gastar menos com outras despesas, está escolhendo gastar menos em investimentos em novas infraestruturas, novos equipamentos para os hospitais etc. As crises econômicas são cíclicas. Sempre haverá momentos de retração de receitas. Daí ser preciso sempre deixar alguma margem livre no limite de pessoal para poder absorver o impacto desses momentos de redução de recursos. O governante que trabalha no limite já está sendo irresponsável.

Espera-se que a atual crise fiscal da maioria dos estados tenha ao menos o mérito de ser pedagógica para a sociedade. O colapso fiscal e financeiro dos que estão em situação mais grave evidencia que as consequências da irresponsabilidade fiscal põem em risco a própria estabilidade das instituições democráticas. O que acontece quando quase toda a arrecadação é consumida com a folha de pagamento de pessoal? Como comprar combustíveis para as viaturas policiais? Como comprar remédios e materiais para os hospitais públicos? Como manter prédios e equipamentos públicos como praças e escolas? Qual a reação da sociedade quando a segurança pública estadual entra em colapso? Qual a confiança da sociedade nas instituições quando isso acontece? Especialmente quando algumas instituições parecem estar imunes e alheias à crise fiscal, como o Poder Judiciário e os tribunais de contas, quase sempre poupados de sofrimentos como atrasos no pagamento de seus salários e redução de repasses para as despesas do dia a dia.

Já é hora de toda a sociedade e de todas as instituições compreenderem que a responsabilidade fiscal não é ferramenta neoliberal para garantir recursos para banqueiros como levianamente se afirmou e se afirma tantas e tantas vezes. Responsabilidade fiscal é pressuposto de execução sustentável no tempo de qualquer programa de governo. Ela não é de direita nem de esquerda. Embora historicamente a direita liberal tenha tido mais facilidade de compreender sua importância, há populistas de esquerda e de direita que acreditam que o aumento do gasto público é a solução mágica para o desenvolvimento.

A responsabilidade fiscal deve ser mantida e defendida tanto pelos governos de direita liberal como pelos de esquerda, como forma de assegurar que suas iniciativas contarão com os recursos financeiros necessários. Ela, portanto, também não é uma solução mágica, mas é condição absolutamente necessária. Apenas isso e tudo isso. A partir dela, é que se torna possível discutir com o que ou com quem gastar. Como força escolhas, ela desnuda preferências. Já a irresponsabilidade fiscal atua com anestésico na sociedade. Como finge dizer sim para todos, camufla os conflitos distributivos, que ficam adiados para surgirem mais a frente com maior intensidade. A irresponsabilidade fiscal apenas finge dizer sim para tudo. Em verdade, ela diz não para o futuro, mas ele parece ser tão abstrato… Diante de um presente que se mostra tão concreto… Por isso é tão difícil compreendê-la. Mesmo instituições que sempre deveriam defendê-la vacilam muito no cumprimento de seu dever. Muitas vezes, acreditando que estão fazendo o bem, acabam contribuindo para a piora do quadro fiscal.

Se o limite com gastos de pessoal nos estados é de 60% da receita corrente líquida, como foi possível que vários estados ultrapassassem esse limite com tanta intensidade? Aqui surgem as várias formas erradas de calcular os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim como a responsabilidade fiscal não foi incorporada como valor cultural pelos governantes e pela sociedade, também não o foi pela maioria dos órgãos incumbidos de defendê-la, especialmente os tribunais de contas estaduais. É incrível como surgiram nessas cortes toda sorte de interpretações que deram azo a que o limite de pessoal da LRF fosse ultrapassado como se a lei estivesse sendo seguida. Cálculos que excluíam os inativos dos limites de pessoal dos poderes ou que consideraram apenas o valor da folha de pagamento líquida da retenção de impostos e/ou contribuições para a previdência estão na raiz do desajuste fiscal tão grave desses estados.

A LRF é uma lei de proteção do futuro por meio da restrição à liberdade de gastar do governante presente. Sua interpretação deve se dar sempre com essa diretriz em mente. Interpretações que flexibilizam conceitos, mitigam restrições, conferem mais liberdade ao gestor estão na contramão dos objetivos da norma e devem ser rechaçadas. Pode-se fingir que se está cumprindo a norma, mas não há como enganar o caixa de nenhum governo. Excluir os inativos do cálculo de pessoal não os exclui da folha de pagamento. A despesa não deixa de existir. Se o limite foi consumido só com os servidores ativos, como fez o Rio Grande do Norte, o que fazer com os inativos? Irão eles concorrer com os remédios dos hospitais e com o combustível das viaturas policiais? Essa é a receita do desastre. A tragédia anunciada e cumprida.

A captura política e o interesse próprio de alguns tribunais de contas também se fizeram presentes nessa cultura de leniência e flexibilização das normas fiscais. Muitos tribunais de contas não quiseram fazer o enfrentamento político necessário para conter a gastanças dos respectivos governadores. Escutei do presidente de um deles que a LRF escolheu um guardião fraco para enfrentar vontades políticas fortes! Quanta falta de coragem e responsabilidade institucional!

Muitas vezes, o próprio tribunal de contas tinha interesse na interpretação que excluía inativos do cálculo dos limites de pessoal dos poderes e órgãos para ele próprio poder contratar mais servidores, tudo com a boa intenção de dispor de mais funcionários para cumprir sua missão institucional. Outras vezes, a interpretação surgiu para atender a pedidos do Poder Judiciário e do Ministério Público, também desejosos de poder realizar concursos públicos para atender suas finalidades. Com boas ou más intenções, as consequências nefastas para a saúde financeira dos estados são as mesmas: a perda da capacidade de investir e de sequer manter as estruturas públicas existentes.

A crise fiscal dos estados e suas raízes interpretativas nos tribunais de contas constituem mais uma razão para a inadiável reforma dessas instituições, tanto para por fim à captura política, quanto para atribuir ao TCU a competência para fixar interpretação vinculante para os outros tribunais de contas sobre a LRF e outras normas administrativas de observância obrigatória para os estados.

Não faz sentido que a norma federal de observância obrigatória não receba interpretação federal de observância obrigatória, sob pena de os estados a descaracterizarem, como fizeram com a LRF.

Outra instituição que vem falhando na defesa da responsabilidade fiscal é o STF. Alguns de seus ministros tem adotado medidas monocráticas para impedir que a União execute contragarantias oferecidas por estados que se tornaram inadimplentes em empréstimos com instituições financeiras em que a União figurou como avalista. Em outras palavras, o estado pegou dinheiro emprestado e não pagou. A União que era avalista, pagou a dívida do estado e está impedida pelo STF de tomar as medidas necessárias, previstas em contrato, para recuperar seus recursos. Trata-se, pois, da proteção ao caloteiro e, dessa forma, do estímulo ao calote.

As cautelares, claro, são bem intencionadas. Imaginam os senhores ministros que estão evitando o agravamento da situação da saúde, educação e segurança da população do estado, mas na verdade estão criando condições para que o mesmo estado e outros, seguindo o exemplo, agravem a situação de suas populações, mediante posturas irresponsáveis de assunção de dívidas que poderão não ser pagas e que serão transferidas para todo o conjunto da população brasileira. Estão premiando os irresponsáveis e desestimulando os responsáveis, imaginando, contudo, que estão protegendo a sociedade. Grave equívoco. Afastar os governantes e os cidadãos das más consequências da má gestão desses governantes não vai melhorar em nada suas condutas, muito menos a cultura de pouca importância ainda dada à responsabilidade fiscal.

Quando o STF compreender que regra fiscal não é mero capricho do legislador, mas pilar da saúde econômico-financeira do país e condição para implementação de todos os demais direitos previstos na Constituição, e que por isso não deve ser excepcionada ou flexibilizada, mas antes cumprida e bem observada por todos, teremos dado um grande passo para atingir um novo patamar de consolidação da cultura de respeito ao dinheiro público, que nada mais é que dinheiro retirado do cidadão.

O STF poderá muito contribuir de maneira concreta para isso com o julgamento da ADI 2.238, proposta ainda em 2002, que questiona dispositivos da LRF que devem ser acionados para corrigir a situação fiscal de estados que ultrapassaram o limite de gastos com pessoal, especialmente a possibilidade de redução temporária de jornada de trabalho e de salários de servidores públicos. Sem esses remédios amargos — mas menos amargos que a demissão de servidores — dificilmente estados como o Rio Grande do Norte terão condições de serem minimamente administrados nos próximos anos.

Além disso, tudo o que for feito para o ajuste fiscal brasileiro, seja da União, seja dos entes subnacionais, certamente será levado a julgamento pelo STF. Da reforma da previdência à venda de ativos do Estado, tudo será judicialmente questionado, como já é, no STF. É preciso, pois, que a Corte Suprema do país compreenda a importância da responsabilidade fiscal, profira julgamentos em consonância com o seu espírito, ainda que isso implique confirmar a aplicação de remédios amargos, seja para as corporações de servidores, seja para os próprios entes subnacionais, para que a sociedade possa usufruir de sucessivos governos equilibrados, de uma máquina pública dimensionada e calibrada para o atendimento das necessidades da sociedade conforme as possibilidades de financiamento dessa mesma sociedade, com foco na entrega dos serviços públicos essenciais.

Sem a atuação firme e alinhada do STF, dos demais órgãos do Poder Judiciário e de todos os tribunais de contas, para dar eficácia às medidas legislativas que forem adotadas pelo Congresso Nacional, não lograremos superar de forma consistente a crise fiscal por que passamos e estaremos sempre à mercê de seu agravamento.

 

Por: Júlio Marcelo de Oliveira/ Consultor Jurídico

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