Peguei emprestado o título de uma música do Ira para falar das pessoas (a maioria de nós, tenho certeza) que envelhecem na mesma cidade onde nasceram. Um dos melhores indicadores para compreendermos a passagem do tempo é nossa cidade. Envelhecemos com nossa cidade! Mudamos com ela! Ela se transforma vertiginosamente à nossa volta, engolindo lugares especiais que hoje só existem em nossa memória. E quanto mais vivemos, quanto mais o tempo passa, mais percebemos as mudanças em nossa cidade. Eu nasci em Teresina e meus pais moravam no centro da cidade, próximo à praça do Fripisa. No longínquo ano de 1976 mudamos para a Avenida Jockey Club, onde permaneci até me casar. Eu, uma criança de 08 anos, ganhei de presente uma terra deserta todinha para mim. Um planeta todinho para mim! Assim era a zona leste no começo dos anos 70. Lá, com minha bicicleta, explorei as ruas vazias do Jockey, muitas vezes cercadas por matas virgens e solidão. Em uma época em que ninguém pegava no pé de criança e não havia a insegurança que há hoje, eu saía de casa muito cedo, quando estava de folga ou de férias, e muitas vezes voltava somente de noite. Meus pais, ambos médicos, tinham mais o que fazer do que pajear filhos, e as pessoas que trabalhavam em nossa casa estavam cagando e andando para onde eu andava.
Então eu andava solto por uma terra de ninguém, de início sozinho, e com o tempo na companhia dos meus primos, que vieram morar pouco tempo depois em nossa rua, e de nativos que fui encontrando em minhas andanças e com quem fui fazendo amizade. Sem qualquer vigília opressiva por parte de nossos pais, fazíamos coisas que só de pensar me arrepiam os poucos cabelos que ainda tenho. Destas coisas não vou falar aqui nesta crônica. Mas vou falar de coisas que não se veem mais hoje em dia, como as pequenas mercearias que eu encontrava em esquinas despovoadas, vendendo Kisucos e uns pães grossos que serviam em pedaços de papel. Além de bombons de todo tipo, que ficavam em um depósito de vidro dividido, cada compartimento separado por uma tampa de metal.
As distâncias naquela época não existiam. Como havia poucos carros, tudo parecia mais rápido, e não havia lugar onde minha bicicleta não pudesse me levar. Eu estudava no Diocesano pela manhã, e a educação física acontecia no turno da tarde. Pois eu saía do Jockey, pegava a Frei Serafim (uma Frei Serafim que os mais jovens não acreditariam, pouco trânsito e com um trilho de trem passando sobre ela perto da Miguel Rosa) e chegava ao Diocesano com minha bicicleta. Na volta a mesma coisa. O Diocesano ainda era um colégio menor, com uma quadra e um velho campo de futebol empoeirado onde jogávamos bola no recreio ou depois da aula. Faço aqui um parêntese para falar que todo jogo de campeonato no Diocesano tinha confusão. Se acabasse um jogo sem ter ao menos uma troca de sopapos, não era jogo valendo. E ninguém separava briga não. O pau cantava até um se ferrar ou ambos cansarem. Eram outros tempos. Meio politicamente incorretos, reconheço. Na cantina éramos servidos pelo irmão Guido, que se divertia dando caçoleta nas orelhas dos colegas que tinham orelha de abano. Faço outro parêntese para dizer que o irmão Guido era bom no que fazia. Ele tinha uma técnica especial e acertava sempre no ossinho que fica bem detrás da orelha. Não tinha um que não derramasse lágrimas ao ter sua orelha em contato com o dedo do pequeno religioso. Em todos os meus anos de Diocesano nunca vi o irmão Guido rezando, mas dando caçuletada em orelhas avantanjadas eu via o tempo todo. Saudades do irmão Guido. Que Deus o tenha!
Quando não queríamos lanchar na cantina nós pulávamos o muro do colégio (havia uma velha figueira ao lado da capela que servia como porta de fuga) e íamos lanchar uma bomba na dona Zezé. Ah, a bomba da dona Zezé! Não existia igual. Nunca mais consegui reproduzir aquele prazer comendo uma bomba. Aliás, na dona Zezé ou você comia bomba ou comia pastelão. Não tinha outra opção. E a dona Zezé era mais grossa que papel de enrolar prego. E nós a amávamos. Ela e sua irmã, dona Marlene, que depois abriu a Marjer Lanches, perto do palácio do Karnak. Outra opção era o pão de queijo do Seu Cornélio, ali na praça Pedro II. Seu Cornélio fazia uma determinada quantidade de pães de queijo pela manhã e a mesma quantidade pela tarde. O problema é que a quantidade que ele fazia acabava por volta de 09:30, e não tinha quem fizesse ele fazer mais. Uma vez eu tentei trazer ele à razão, e falei que se ele quadruplicasse o número de pães de queijo ele venderia tudinho. Ele olhou para mim e falou: “Só faço essa quantidade. Se quiser comer da próxima vez chegue mais cedo”! Em tempo, nós também amávamos o seu Cornélio! Havia também o cachorro quente da Lobrás, seguido da Banana Split. Havia a coxinha da Rio Branco, que antes do seu Nagami era, na minha humilde opinião, a melhor de Teresina.
Aqui faço um parêntese para falar que sou um profundo apreciador de coxinhas, e que sempre faço um ranking das melhores coxinhas de minha cidade. Toda vez que alguém diz que surgiu uma lanchonete nova com uma coxinha boa, eu vou lá conferir. E então julgo. Tenho meu TOP 5, que é constantemente atualizado. Para julgar corretamente, tenho que comer muita coxinha. Faço isso por necessidade profissional, diga-se de passagem. E quais as características da coxinha perfeita? Em primeiro lugar ela tem que ter uma perfeita proporção entre massa e frango, estando o frango na correta proporção com o volume específico da coxinha. Convém lembrar que frango em excesso é negativo, e influi no sabor. Da mesma forma massa em excesso lhe remete para alguma rodoviária de beira de estrada. Outro ponto positivo de uma boa coxinha: a massa externa deve apresentar uma crocância exata, de forma que nossos dentes penetrem o invólucro após uma pequena resistência, adentrando a área interna sem despedaçar tudo e deixando uma leve aderência no esmalte dos dentes. A coxinha perfeita deve, após ser apertada entre os dedos, voltar à sua forma original. Detalhe importantíssimo: o frango no interior deve vir na temperatura ideal, quente e fresco. Não preciso dizer que não há qualquer tipo de perdão para uma coxinha que esteja quente por fora e gelada por dentro. Casos assim não merecem uma segunda chance. Descarto imediatamente o lugar para incursões futuras. Levo isto muito a sério. Para finalizar, a coxinha deve ser feita na hora, e a gordura deve ser trocada várias vezes ao dia, dando ao salgado aquele sabor saudável de gordura nova.
Voltando do parêntese, e como já estamos bem aqui pelo centro, tenho que falar do cine Rex e do cine Royal. Até escrevi uma crônica um dia sobre o famigerado cine Rex, que ficava na praça Pedro II e notabilizava-se por passar apenas dois tipos de filme: sexo explícito ou lutas marciais. Não dava outra! Se não tivesse alguma loura oxigenada de seios enormes no cartaz, então teria a cara do Bruce Lee, inevitavelmente. E nós, alunos do Diocesano, todos menores de idade, iniciamos nossa vida pornográfica ali, já que não havia qualquer fiscalização na porta. Os nomes dos filmes eram outra diversão à parte. Os títulos eram crus, sem qualquer tato, como Rebuceteio, Vaginas Douradas ou Enfiando a Vara. O Rex fazia parte de nossa paisagem, com aquela decadência majestosa que sua arquitetura impingia a todos. Aquele pé direito enorme, aquelas poltronas outrora elegantes, que ainda traziam vestígios de dias melhores, tempos áureos. O uniforme do bilheteiro, ostentando insígnias que poderiam fazer algum sentido no passado, não ali naquela época. Tudo isto em contraste com a decadência, que se materializava na plateia e nos filmes toscos projetados. A outra opção era o cine Royal, muito mais família e muito mais organizado. Quem de nós daquela época não pegou filas quilométricas para assistir algum filme dos Trapalhões? E antes do filme quem não curtiu o gol de placa do seu time no Canal 100, que sempre antecedia os filmes?
E os bares da minha juventude? Será que existiu de verdade o maravilhoso chopp que eu tomava no Choppão, ao lado da Charmen’s? E o que dizer dos botecos que terminavam sendo uma extensão de nossa casa, e nos quais encontrávamos pessoas, e sorríamos, e falávamos da vida, e paquerávamos, e éramos felizes, como o Copo Vazio, ou o Trópicos? E os clubes sociais sempre cheios e efervescentes? Lembro do Iate Clube e das matinês na época do carnaval, além dos tradicionais bailes pré-carnavalescos. Da mesma forma o Jockey Club e a AABB, que tinha um tradicional baile toda sexta feira antes do carnaval. Classes Produtoras, Economiários, Tigrão, River e muitos outros! A era de ouro dos clubes! E como falei de carnaval, havia a famosa Banda Bandida, concorridíssima. Às vezes eu parava o carro lá na frente da Elefantinho, na Frei Serafim, e fazia o percurso a pé.
Teria muitos mais lugares para colocar aqui. Cada um de nós tem. Lugares que não existem mais e que fizeram parte de nossa vida. Lugares que ficaram em nossa memória e em nossos corações. Não só lugares, mas o próprio tempo em si. E os natais cinzentos e úmidos, onde o mundo era uma tempestade, uma nostalgia, uma esperança? E andar nas calçadas à noite? Onde anda a cidade onde crescemos e fomos criados? Onde anda aquilo tudo? Envelheceu apenas? Ou se perdeu? A cidade permanece, mudada talvez, mas ainda entre nós. Envelhecemos nós, isto sim!
Sérgio Idelano
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