A Caverna do FUNDEF

Sucesso nos anos 1980, a Caverna do Dragão foi uma série que contava a história de seis adolescentes que embarcaram em uma montanha russa, mas, durante o passeio, um portal se abriu e os transportou para o reino paralelo da Caverna do Dragão. No Reino, os jovens são guiados pelo Mestre dos Magos e lutam contra o malvado Vingador para tentar voltar para casa, contudo os episódios terminam sem uma conclusão exata e até hoje não se sabe se eles de fato conseguiram retornar.

Em 2015, uma decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) abriu um portal na política da educação brasileira e, desde então, profissionais da educação, gestores públicos, Judiciário, Legislativo e órgãos de controle tentam, sem sucesso, desvendar os mistérios desse reino paralelo: a Caverna do Fundef.

A decisão do TRF3 foi fruto de uma Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) em 1999, que questionava o cálculo do valor mínimo anual por aluno disciplinado pela lei do antigo Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef). Reconhecido o erro no cálculo, a União foi obrigada a pagar R$ 90 bilhões a título de precatórios para mais de 3,8 mil municípios brasileiros.

No Piauí, o Tribunal de Contas do Estado (TCE/PI) decidiu, ainda em 2016, que os recursos deveriam ser depositados em conta específica, estar previstos na Lei Orçamentária Anual (LOA) e recomendou aos municípios a aplicação nos termos da Lei 9.424/96, que regulamentava o Fundef: 60% em remuneração do magistério e 40% em outras despesas de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) (TC/017339/2016).

Em dezembro do mesmo ano, a Reino foi abalado por uma decisão da Corte de Contas estadual que autorizou o pagamento de débitos previdenciários com o Fundef, devendo o saldo restante, caso existisse, ser aplicado conforme a Lei nº 9.424/96 (Decisão nº 01733/2016). A orientação foi confirmada no ano seguinte, através da Decisão Normativa nº 27, que determinou que, para os municípios que possuíssem Regime Próprio de Previdência Social, a prioridade de utilização dos precatórios seria com pagamento de débitos previdenciários e, em segunda ordem de prioridade, débitos trabalhistas dos servidores da educação oriundos de decisões judiciais. A decisão permitiu, ainda, caso remanescesse recurso, o pagamento de abono ou aumento de remuneração, ambos a serem regulamentados por lei municipal.

Longe de desvendar os mistérios do reino paralelo dos precatórios do Fundef, o Tribunal de Contas da União (TCU), em 2017, firmou o entendimento de que a natureza extraordinária desses recursos afastava a sua subvinculação, ou seja, deveriam ser utilizados, em sua totalidade, em ações de MDE, sem pagamento de profissionais de educação (Acórdãos 1.824/2017 e 1.962/2017).

Logo em seguida, o TCE/PI, acompanhando o entendimento do TCU, proferiu decisão determinando a abertura de duas contas vinculadas à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, sendo uma conta aplicação, que receberia os rendimentos da aplicação e permaneceria bloqueada, para a qual seriam transferidos 60% dos recursos recebidos, e uma conta corrente/aplicação, para a qual seriam transferidos os 40% restantes dos recursos do Fundef, que também permaneceria bloqueada, até a apreciação, pelo Tribunal, de plano de aplicação e efetiva autorização legislativa (Decisão nº 02/2017).

Em dezembro de 2018, o TCU proferiu novo acórdão esclarecendo que os recursos do Fundef, além de não estarem submetidos à subvinculação de 60%, não poderiam ser utilizados para pagamentos de rateios, abonos indenizatórios, passivos trabalhistas ou previdenciários, remunerações ordinárias ou outras denominações de mesma natureza, aos profissionais da educação (Acórdão nº 2866/2018). Ainda no mesmo mês, o TCE/PI alterou seu entendimento para seguir o da Corte de Contas da União (Acórdão nº 2.080/2018).

Tudo parecia tranquilo no Reino dos precatórios do Fundef (a despeito da compreensível insatisfação dos profissionais da educação), até que sobreveio a Lei nº 14.057, de 11.09.2020, dispondo que tais recursos deveriam obedecer sua destinação originária, inclusive para fins de garantir pelo menos 60% do seu montante para os profissionais do magistério ativos, inativos e pensionistas, na forma de abono, sem que houvesse incorporação à remuneração dos referidos servidores.

Diante da nova montanha russa que todos pareciam embarcar, o TCU determinou, cautelarmente, aos entes municipais e estaduais beneficiários dos precatórios, que se abstivessem de utilizá-los no pagamento a profissionais do magistério ou a quaisquer outros servidores públicos, a qualquer título, até mesmo de abono, até que o Tribunal decidisse sobre o mérito da questão (Acórdão nº 1039/2021).

Por sua vez, a Procuradoria-Geral da República ajuizou, em junho de 2021, ação direta de inconstitucionalidade em face do art. 7º, parágrafo único, da Lei 14.057/2020, cujos autos encontram-se conclusos ao Relator, Min. Roberto Barroso, desde 17 de agosto de 2021 (ADI 6.885).

Após, o Reino ganhou contextos constitucionais, tendo a Emenda Constitucional nº 114, de 16 de dezembro de 2021, previsto que da aplicação dos recursos dos precatórios do Fundef, no mínimo 60% deveriam ser repassados aos profissionais do magistério, inclusive aposentados e pensionistas, na forma de abono, vedada a incorporação na remuneração, na aposentadoria ou na pensão.

Mais recentemente, em abril de 2022, a Lei nº 14.325 dispôs especificamente sobre a utilização desses recursos com os profissionais da educação, estabelecendo que teriam direito ao rateio os profissionais do magistério da educação básica que estavam em cargo, emprego ou função, integrantes da estrutura, quadro ou tabela de servidores do Estado, do Distrito Federal ou do Município, com vínculo estatutário, celetista ou temporário, desde que em efetivo exercício das funções na rede pública durante o período em que ocorreram os repasses a menor do Fundef (1997-2006), bem como os aposentados que comprovarem efetivo exercício nas redes públicas escolares no período e os herdeiros, em caso de falecimento desses profissionais.

Diante desse emaranhado de normas e decisões, os seis jovens, o Mestre dos Magos, o Vingador, eu e você, caro leitor, esperamos a decisão do Tribunal de Contas da União no processo nº 012.379/2021-2, que se encontra pendente de julgamento e deve traçar as balizas para aplicação dos recursos dos precatórios do Fundef a fim de que, finalmente, possamos sair do reino paralelo.

Gilson Soares de Araújo

Auditor de Controle Externo do TCE/PI

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